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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Depoimento romântico


Eu gostava dela desde 1945

O rio desce as serras e chega a áreas mais povoadas, encontrando um vilarejo atrás do outro. A abundância gerada pelas suas águas ou, a depender da época do ano, pela umidade que vem do subsolo, alimentou um intenso comércio entre os municípios da região. Durante décadas, mangaios e almocreves iam e vinham pelas estradas de terra carregando frutas, verduras e legumes para vender nas feiras livres das cidades e vilarejos.
As tropas de burros dos almocreves não existem mais. No século XXI, ainda há pequenos roçados de subsistência, porém o que mais se planta no Alto Capibaribe é cenoura, cuja produção é comprada por atravessadores e vendida na Ceasa do Recife. Desse mesmo lugar, vem quase tudo que é comercializado nas feiras livres semanais. José Cincinato da Silva, prestes a completar 99 anos, em fevereiro de 2010, foi testemunha e protagonista de tudo isso.
Na juventude, ao lado do pai, cuidou de sua roça, plantando feijão, macaxeira e milho para a própria família. Já casado e com filhos, tangeu pelas serras os burros carregados com a produção alheia. Vendeu, comprou e trabalhou para o governo. Garantiu uma aposentadoria tranquila. E, durante todo esse tempo, cultivou um amor correspondido por dona Maria José de Melo, um amor que não teve nada de casto, uma paixão vivida, sem culpas, há mais de 60 anos.
A caminho para o Sítio das Marianas, a alguns quilômetros da divisa de Jataúba e Brejo da Madre de Deus, um agricultor chamado Nena dá uma informação importante para avaliar
o grau de lucidez do morador mais velho daquela região: “Se for negociar com ele, tome cuidado que o homem é vivo demais”. Cincinato ri do alerta dado pelo vizinho, não con-firma nem desmente sua esperteza, mas, ao contar sua história e da sua comunidade, revela uma memória intacta, um tesouro de datas, detalhes, frases completas proferidas há muito tempo.
“Quando eu me entendi de gente, um dia chegou um amigo do meu pai, mais a mulher e o menino. O menino com uma cartilhinha de ABC. Aí eu olhei, olhei. Quando ele foi embora, eu disse: “Pai, mande comprar uma cartilhinha daquela pra mim”. “Pra que você quer, meu filho?” Digo: “Pra eu aprende a assinar meu nome”. “Como é que você aprende? Não tem escola, não tem nada aqui”. Eu digo: “Eu peço lição a quem sabe”.
“Era novo, novo. Eu tinha 10 anos, 11 anos, por aí assim. Era um menino, um menino. Aí ele mandou adquirir a cartilhinha e eu ficava, quando eu encontrava uma pessoa que sabia ler, eu pedia uma lição e assim aprendi a assinar o nome. Só aprendi a assinar o nome, mesmo”.
Foi o bastante para, depois de começar tirando leite das vacas, ainda adolescente, “tomar conta do serviço” da fazenda onde morava sua família. Era uma espécie de administrador ou gerente do proprietário das terras, de quem acabou comprando a casa e o pequeno lote em que vivia. Isso foi em 1953. A partir daí, a lavoura passou apenas a complementar a renda, quase um passatempo.
“Eu nessa data, nesse tempo, eu já tinha um empreguinho na prefeitura de Brejo, empreguinho pra cobrar imposto. Um parente meu trabalhava na prefeitura, foi lá e arrumou esse empreguinho pra mim, pra cobrar imposto. Saída de mercadoria de um município pra outro”.
Com duas atividades simultâneas, Cincinato conta como era possível conciliar o serviço de almocreve e o de fiscal da Receita Municipal. Curiosamente, a cansativa rotina com a tropa de burros ajudava a fiscalização.
“Continuei e fiquei trabalhando, trabalhava, eu comprava, gostava de comprar mamona pra carregar, pra vender. Arrumei uns burrinhos, eu encontrava um cabra com uma tropinha de boi pra Pesqueira, pra Poção, aí eu cobro o imposto”.
“Fiquei tangendo, tangi burro dez anos. Dez anos! Serviço pesado, é o serviço mais pesado que existe no mundo é tanger burro. Carregava quatro burros, era cinco horas. Carregava, tangia.
Onze horas tava baixando feijão, milho pras feiras... Caruaru, aquela mata por lá, eu conheço aquilo ali tudinho, Cupira... Vinha de novo, comprava de novo... aí comprava cereais e vendia ali na cidade de Jataúba, nesse tempo, não era cidade não, era vila e tinha uma feira, a de Jataúba, a feira era no chão. Trabalhei dez anos nessa vida, uns chamam de almocreve”.
“Depois as coisas foram melhorando, Deus foi me ajudando e eu fui comprando um bichinho, uma coisinha e tal. E trabalhando na prefeitura, trabalhei 18 anos na prefeitura. Depois, com 18 anos, eu fui... chegou um fiscal, um inspetor fiscal procurando uma pessoa pra credenciar também pra trabalhar no Estado. Aí, me apontaram. Aí, mandaram me chamar, eu fui. Cheguei, falou perguntando se eu aceitava. Eu disse: “É, mas minha leitura é pouca”. Aí disse: “Não, você não tá cobrando imposto do município? Você vai trabalhar com o município e no Estado. Depois você pode até ser nomeado no Estado”. E, de fato, com poucos dias fui nomeado no Estado”.
A fama de homem trabalhador, com tino para negócios e o fato de ser casado e pai de cinco filhos não impediram José Cincinato de varar noites e mais noites nas festas, ou “sambas”, em Passagem do Tó e Jataúba. Tocando sanfona e dançando forró, ele arrasou corações. O seu, porém, batia exclusivamente por Maria José. Os dois se apaixonaram quando ela tinha 15 anos, uma menina no Sítio Mundo Novo. Ele, um homem casado, cheio de filhos e quase 35 anos nas costas.
“Eu gostava dela de muito tempo. Eu, já casado, gostava dela. Vou contar outra história... vivi 59 anos com a primeira esposa, o nome era Olívia. Ela morreu em 89. Eu com nove anos casei com ela...”
Nesse momento, Maria José, completamente cega aos 78 anos, interrompe e corrige o marido:
“Nove meses...”
“Com nove meses eu me casei com ela...”
Mais uma vez, Maria José:
“Casei com ele no dia 25 de julho de 1990”.
“Graças a Deus, até hoje ninguém brigou, não. É de muito tempo já, eu gostava dela desde 1945. E a minha esposa era amiga dela...”
Maria José toma a palavra, definitivamente, para, com sinceridade, sem falsos pudores, contar sua história de amor eterno.
“Eu sou falsa, né? Mas, na época, já gostava dele também. Já fui casada primeira vez, com outro marido, me casei a primeira vez. Tive só duas filhas do meu primeiro marido. Dois filhos: uma filha e um filho... e tem uma filha dele... era essa que tava aqui” (ela se refere a Maria da Paz, sua filha mais velha e dona da casa onde aconteceu a entrevista).
“Esse velho... não dei muita atenção a ele, esse que eu casei com ele a primeira vez. E então, aí inventou de morar junto, eu disse: ‘Eu não vou querer morar junto de ninguém, porque eu estou grávida de três meses’. Ele disse: ‘Tem nada, não, quando nascer, nós damos à sua mãe e ajuda ela criar’. Eu digo: ‘Mas tinha graça!’ Minha mãe já uma senhora, já velha, já criava um neto. E eu, nova em folha, pra morar com esse camarada, dar minha filha aos outros? Ah, minha mãe, mas não posso! Aí passei oito anos junto com o véio... aí ela nasceu, eu tava casada de três meses”.
“Aí, ele não falou mais, ele viu que eu queria muito bem a ela e não falou, de jeito nenhum. Vem falar, pra tu ver se não vai ficar só! Aí, ele não falou, e ela novinha... ele pegou amizade a ela, a menina não podia chorar, dá um chorinho...”
“Cicinato não, ele era casado tinha a família dele e tal. Um dia, ele veio, conversou besteira que só. ‘Eu não posso viver com você mais porque já me casei e você é casado’, mas nós nunca se esquecemos um do outro. Olhe, eu vou dizer, porque a gente tem que falar a verdade: ‘Nunca me esqueci de gostar dele’. A gente passava dois a três meses sem se encontrar, um tempo e lá vai, lá vai. Até que... eu fiquei viúva, passei 18 anos viúva. E ele só passou nove meses. Pronto, aí inventou de casar, casamos até hoje”.
Cincinato escutou tudo com um sorriso sonso, que não esconde o orgulho desse amor:
“Ela não pode dizer que eu não presto...”
“Ele também não pode dizer nada porque traí meu marido. Meu primeiro marido eu traí com ele, mas depois casei com ele. Graças a Deus, eu nunca traí ele, não”.

Fonte: http://www.museucapibaribe.com Livro - Um rio de gente Histórias, causos e lendas do Capibaribe.

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